terça-feira


Em todos os Natais da minha vida, acabou sempre por faltar alguém... por uma razão ou por outra, havia sempre alguma ausência que se notava, que nos deixava tristes, mas, no fundo, sabiamos que era uma ausencia temporária...


Nos últimos anos permaneceram as ausencias... A tua... a mais significativa.... a única permanente...


No último Natal que passamos juntos já não estavas bem... Demasiado magro... demasido fraco... e no entanto... recordo o teu riso na noite de Natal enquanto o meu irmão saía do teu quarto, vestido de Pai Natal e a minha filha dava pulos de alegria à medida que ele lhe dava cada prenda para desembrulhar...

Nessa noite ainda tiveste força para me teres no teu colo, lugar que que era meu por herança de ser a tua filha mais nova...


Não é por ser Natal que sinto a tua falta... é por já não sentir da mesma forma o Natal... Desde que partiste nunca mais houve "Natal", com "N" maiúsculo... é natal... sim... é natal... As outras ausencias continuam me a afectar, mas não da mesma forma....


Quando tu e a mãe casaram fui eu a menina das alianças... Ainda hoje me lembro de ter ficado fascinada por ver a mãe assim vestida.... Estava linda... de vestido curto, justo e azul claro... e tu, de com calças à boca de sino e camisola de gola alta... Nunca foste homem de usar gravatas... Nesse dia achei que tinha os pais mais giros do mundo...


Na sexta feira passada voltei ao cemitério.... Era hora de almoço e estava completamente vazio à excepção do segurança que estava na porta e de um homem de etnia cigana que estava junto da campa da mulher...


Sempre que lá vou ele está lá... sentado, sempre no mesmo sitio, num banco junto à campa, com um olhar distante.... acredito que ele nunca me tenha visto lá... também acredito que ele não veja ninguém... Por mais estranho que possa parecer ele montou uma tenda nas portas traseiras do cemitério... é para lá que ele se dirige quando o segurança o vai buscar para poder fechar as portas...


Não sei se será tradição... não sei se é por loucura... sei que desde que faleceste, há 3 anos, ele permanece por ali...


Nunca gostaste de cemitérios nem de funerais... Tinhas um sentido de humor um pouco mórbido... No funeral no meu avô, durante a missa, eu, tu e a minha irmã ficamos cá fora da igreja... junto às campas... Eu tinha cerca de 18 anos. Dizias que os seguranças estão à porta dos cemitérios durante a noite para distribuir senhas aos mortos que querem ir sair para uma discoteca...


"antigamente não era preciso senhas... mas depois... saiam 30 mortos e voltavam 50... e andavam à porrada por não haver campas para todos...por isso eles adoptaram o sistema das senhas... só entra quem tem senha... o resto fica à porta..."


Sei que se tu hoje me pudesse dizer alguma coisa dirias que tinhas passado o Natal com a minha tia-avó e o meu tio Arlindo.... Dirias:


"foi uma festa...o Arlindo, que já não tem a mulher para o controlar, bebeu e comeu a noite inteira... até tive que o levar à campa dele porque ele já não sabia o caminho... A tia-avó convidou um velhote que ela conheceu aqui, que por acaso até tem um contacto que arranja tabaco e whisky, e foi a nossa safa, que eu já andava a ressacar de tabaco. É pena ser tabaco espanhol... mas vai aliviando o vício."


Tiveste 4 filhos de dois casamentos... E somos todos diferentes... Como diz a mãe eu sou a mais parecida contigo... e sou o teu feitio chapado... E sabes? tenho um orgulho enorme nisso...


Tenho saudade tuas... muitas... Gostava de te ter podido dizer mais vezes que te adorava... Foi contigo que aprendi a ter uma visão muito própria do mundo... que aprendi que nem todas as pessoas compreendem a nossa forma de estar... ensinaste me o gosto pela música... o gosto de cantar enquanto tocavas viola (deixei de o fazer quando partiste)... fascinavas me quando fazias malabarismo... e sobretudo ensinaste me que não devemos viver segundo as regras da sociedade... e devemos lutar sempre por ser felizes...


Todos os dias da minha vida tento fazer por isso... Lutar com todas as minhas forças pelos meus sonhos e para ser feliz... para que continues a ter orgulho em mim... como sempre tiveste....